🚌 A heroína do ônibus
Ela nem sabe o impacto que teve em mim, mas obrigada, jovem desconhecida!
English version is here :)
Nas duas temporadas da série The Bear, da Netflix, existe um episódio que propositadamente é caótico. Analisando de fora, é uma obra cinematográfica de respeito – o da primeira temporada é gravado dentro da cozinha de um restaurante sem cortes.
Minha manhã de ontem, sexta-feira, foi mais ou menos desse jeito, mas sem a beleza do cinema. Eu dormi cansada, questionando se iria ou não para o dinamarquês na manhã seguinte, já que eu havia faltado a última aula e não tinha feito a redação do dever de casa. O trabalho nos últimos dias foi insano.
Eu dei uma palestra na quarta, outra na quinta e depois da aula de sexta eu daria minha terceira palestra em três dias. Se você não sabe, uma boa palestra não é só ir lá e falar coisas bonitas - tem muita preparação, planejamento, ensaio e ajustes. E foram 3 seguidas 🤡 Nota mental: não fazer mais isso.
Eu acordei 1h30 antes do meu despertador e pensei “Vou precisar fazer ainda mais café para levar para a aula.” Aproveitei esse tempo e fiz minha redação. Preparei meu café e minha garrafinha de água, afinal, se eu tenho café especial brasileiro em casa, não tem razão nenhuma de gastar R$21 no café da 7/11, aquela rede americana de lojas de conveniência. Tem uma a cada esquina aqui.
Preparei minha bolsa com os livros e, como gastei minha 1h30 extra na redação e resolvendo áudios de trabalho, fiquei sem tempo de preparar algo para comer. Pensei: “Lá vamos nós para o croissant cansado da 7/11.” Antes isso do que beber meu café de barriga vazia durante a aula.
Saí de casa uns 10 minutos antes para dar tempo de comer e quando entrei no ônibus percebi que havia deixado o café e a água em casa.
Eram 8h15 da manhã, eu estava cansada pelo que havia passado e cansada por antecipação pelo que viria. Passaria 2h30 fritando o cérebro em dinamarquês e ainda tinha que estar plena para palestrar às 14h. Quer saber: pelo menos eu vou viajar sentada.
Nos ônibus daqui existem aqueles bancos em que duas cadeiras estão viradas de frente para outras duas cadeiras. Muito bacana socialmente, mas péssimo na prática, né?
Seguindo o silencioso protocolo social, percebi que todas as duplas de bancos já estavam ocupadas por pelo menos uma pessoa, mas o banco de quatro tinha apenas um rapaz na janela, logo o mais indicado era sentar na frente dele, no assento do corredor, e assim o fiz.
Como todo esse processo decisório se dá de forma muito rápida, eu só percebi que ele estava manspreading quando me sentei e tive que direcionar minhas pernas levemente para o corredor.
Se você não sabe, manspreading é essa mania ridícula que vários homens têm de se sentar arreganhado. O motivo para isso? Nenhum. Não existe nada que explique essa necessidade. Só a falta de noção mesmo. E sim, até na Dinamarca tem isso.
Lembre-se que eu não estava na frente ou do lado dele. Eu estava na diagonal e ainda assim precisei me acomodar de forma diferente porque o rapazinho precisava ocupar todo o espaço do mundo 🙄
O lance é que o ônibus começou a encher e em determinado momento um homem se sentou na minha frente, ou seja, ao lado do Arreganhado. Senti uma leve ponta de vitória dentro de mim, já que ele precisou diminuir o ângulo da sua abertura em pelo menos uns 30 graus.
E o ônibus continuou recebendo mais e mais passageiros.
Até que
entra uma jovem
pede licença
e se senta
na
frente
do
Arreganhado
Fui invadida por um misto de choque e satisfação que nem sei explicar. Nem preciso dizer que, com outras duas pessoas compartilhando aqueles 4 bancos, as pernas do Arreganhado ocupavam completamente o banco da frente dele. E a menina foi lá e sentou, gente!
Sem cerimônia. Sem hesitar. Simplesmente ocupou um lugar que era de direito dela (e de qualquer outra pessoa), obrigando nosso amigo Arreganhado a usar o espaço que cabia a ele. Como todas as outras pessoas.
Você já viu o filme “Dogville”? Se sim, não sei qual foi sua reação ao final, mas a minha foi de profundo triunfo. O mesmo triunfo que saboreei depois que o choque passou e eu vi as perninhas do Arreganhado se encolhendo que nem a cena onde Dorothy recebe os sapatinhos de rubi da Bruxa Má do Oeste esmagada pela casa, no filme “O Mágico de Oz”.
Aquela menina, com uma atitude tão besta, colocou no chinelo meus medos sociais. Os meus e os de muitas outras pessoas naquele ônibus, não tenho dúvidas.
Segui meu rumo para a aula, gastei R$ 50 em uma água, um café e um croissant na 7/11, consegui me perder no metrô – eu tenho esse talento de me perder em lugares conhecidos -, mas na hora de pegar o ônibus na volta, eu pedi licença e me sentei no último assento livre do banco de quatro.
Era o do corredor, mas já me senti vitoriosa 😊