Deuses entediados são um perigo. Eu sei bem disso, estou aqui há tanto tempo quanto o tempo. Ainda bem que essa máxima não se aplica a mim. Sempre existe algo acontecendo, mesmo que seja a falta de inspiração dos meus colegas. Meu papel é garantir que tudo possa ser relembrado.
A natureza do que faço exige certa neutralidade, afinal a História das histórias não pode ser contada de maneira parcial. Ok, entendo muito bem o meu ofício, mas isso não me impede de ter opiniões, não é mesmo?
Ou você acha que os divinos não discutem, não discordam e vivem em harmonia? Nesse caso estaríamos descrevendo pedras e não deuses.
Mas vamos do começo que te interessa.
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Em um tempo incalculável, o que havia não bastava e o tédio pairava sob todas as entidades divinas. Havia uma sofreguidão até para se gabarem de seus grandes feitos. Nem a competição eterna sobre a última criação mais badalada dava ânimo.
Então uma ideia emergiu: "E se concebêssemos algo que se desenvolvesse sozinho?" - A proposta gerou alguma curiosidade. "Podemos gerar um embrião e deixar sua evolução longe das nossas vontades. E assim nos surpreender."
Alguns foram céticos se funcionaria, mas a maioria viu uma oportunidade, principalmente quando alguém sugeriu a forma de um planeta. Um ecossistema complexo poderia gerar entretenimento por eras.
Com o projeto principal estabelecido, surgiram ideias de todos os lados - se tudo fosse incluído, não haveria a menor chance de dar certo.
"Sua base pode ser de fogo!"
"Discordo. Que seja feito todo de água."
"Vamos forjá-lo dos metais mais resistentes para durar por toda a eternidade junto a nós."
"E estrelas? Seria brilhante! Poderíamos acompanhar a longas distâncias."
Essa última até tinha potencial, mas considerando o caráter finito das estrelas, infelizmente não pude apoiar.
Essa foi a segunda discussão mais acalorada que vi entre os divinos, e certamente a mais duradoura. Levou tempo até Garieli tomar a frente e sugerir que as ideias seriam ouvidas uma por vez, até que não houvesse mais sugestões. Apenas dois critérios poderiam vetar sua adição ao projeto: se inviabilizasse a auto evolução ou se conflitasse com ideias já aprovadas.
A princípio funcionou muito bem e o planeta se moldava como um espaço rico e promissor, mas os defensores do caos conseguiram adicionar pequenos 'toques de estilo'. Ao invés de um planeta com nuvens de fogo, propuseram raios e descargas ocasionais de energia. Rios feitos de lava? Acabariam com metade das ideias anteriores, mas, e se estivessem sob camadas e camadas de pedra? Parecia inofensivo e ainda funcionaria para equilibrar a temperatura do lugar. E se vazassem em um ponto ou outro, daria um leve contraste com as centenas de coisas verdes e azuis que já havia.
Assim, cada elemento foi adicionado sem que o resultado pudesse ser antecipado, e então, quando houve silêncio, a contemplação começou.
A única regra era simples: ninguém poderia interferir, corrigir ou influenciar o curso de nada que ali ocorresse, mas já estavam todos tão imersos nas mudanças espontâneas que não era preciso relembrá-la. Todos se deleitavam com o fato de não saberem aquele futuro, uma sensação nova para os divinos.
Por eras, o principal assunto foram as combinações espontâneas ocorridas no planeta, gerando explosões ou novas formações. Observar e nomear as novidades mantinha a maior parte de nós absortos por muito tempo. Alguns se dedicavam a criar histórias sobre possíveis futuros, outros faziam previsões de qual seria a próxima combinação e a pluralidade de acontecimentos fascinava cada vez mais os olhos daqueles que já haviam visto de tudo.
A complexidade de transformações em determinado momento gerou vida. A princípio muito rudimentar, mas com uma velocidade de evolução magnífica. Em pouco tempo havia seres em quase todos os ambientes daquele ecossistema, se movimentando por montanhas, oceanos e até pelos ventos.
Um deus sabidamente rabugento insinuou que aqueles seres um dia largariam seu lugar de origem e viriam ao nosso encontro. Rimos muito com esse comentário. Mal sabíamos que seria o contrário.
As formas de vida nos surpreendiam cada dia mais. Algumas eram imensas, com uma força desproporcional. Outras conseguiam transitar pela água, pela terra e pelo ar – com um domínio único dos elementos. Até o surgimento de um ser que começou a combinar elementos de maneira peculiar.
No início ocorria de forma intuitiva, motivada pela pura sobrevivência naquele ambiente hostil. Lascar uma pedra, transportar o fogo, fazer crescer frutas, mover a terra para criar abrigo das intempéries. Assim como os outros seres, esse também sentia e canalizava a energia da natureza, mas rapidamente sua execução começou a apresentar traços diferentes, uma capacidade nova.
Sua evolução se acelerou de maneira assustadora. Foi inclusive solicitado à deusa da verdade para inquirir os demais e saber se havia ocorrido interferência – era difícil acreditar que algo tão genial pudesse ter se criado sem a influência do divino -, mas nada foi feito porque estavam todos hipnotizados com aquela obra magnífica que surgia com novidades todos os dias.
Foram chamados de Unos, porque pareciam reunir em uma só forma todas as habilidades que já haviam surgido naquele lugar. Era a criação não-criada que mais orgulhava os deuses. Como ninguém poderia ganhar os créditos, não havia disputas por elogios ou alguém tentando reduzi-los a meros seres inferiores para evitar a vaidade dos demais. Todos nutriam uma enorme afeição pelos Unos.
Rapidamente aprenderam a manipular o que havia ao seu redor: elementos da natureza, a energia dos recursos e até outros seres. Sua perspicácia permitia sua sobrevivência em lugares inóspitos e a formas de vida que naturalmente seriam seus predadores. Criaram abrigos, instrumentos, guardavam recursos como se pudessem antecipar o que viria. Entenderam os ciclos da terra, da água, do tempo. E o fascínio por tudo isso cegava os deuses sobre a maneira como os Unos tratavam outros seres. Crescia uma arrogância vinda da sua capacidade de aprender e mudar.
Por facilmente tomarem espaços com suas invenções, subjugaram aqueles que eram diferentes – prejudicando e desacelerando a evolução de outros seres que coexistiam ali.
O primeiro a questionar esse comportamento foi Thesils e seu olhar para a bondade. Ele percebia que os Unos começaram a tomar decisões com justificativas vãs, motivados pela vontade de se colocarem acima dos outros. Como sempre, poucos o escutaram.
Outros questionamentos foram feitos, mas a cada dia surgia uma nova e surpreendente criação dos Unos - era inebriante demais e mascarava os problemas. Nessa altura, alguns os chamavam de 'Pequenos Deuses'. Poderia ter sido esse o sinal de que algo estava errado, mas quem percebeu não foi ouvido.
A evolução dos Unos começou silenciosamente a deteriorar o espaço e até outros seres. Mais e mais deuses começaram a questionar o tamanho dos poderes daquele grupo. Alguns defendiam ser o curso natural da evolução, enquanto outros chamavam a atenção para os riscos desse aparente descontrole.
Os deuses são lentos. Por vezes burros. Mas principalmente vaidosos.
Somente quando os estragos se mostraram irreversíveis, foi convocado um debate. A influência dos Unos foi tão profunda que a evolução natural desacelerou. Não havia mais aquela variedade de combinações acontecendo espontaneamente. Uma intervenção se fazia necessária.
Sabe o pai coruja que faz vista grossa para as bobagens cometidas por seu filho? Era essa a sensação. Por um lado, havia um apego irracional que buscava amenizar a situação e por outro um chamado urgente para decidir como refrear aquele comportamento. Alguns até temiam se aproximar dos Unos, com receio de que fossem capazes até de dizimar um divino.
Outros, mais pragmáticos, queriam simplesmente extinguir os Unos e manter o curso do planeta sem esse desequilíbrio.
Por fim, decidiu-se conversar com os Unos. Havia uma esperança de que seres tão pensantes entenderiam nossas colocações e mudariam sua trajetória.
Confesso: eu também comprei essa ideia. Algo parecia errado, mas seus feitos eram tão maravilhosos e havia tanto aprendizado em acompanhá-los que eu também não queria sua extinção.
Três de nós foram designados para assumir uma forma próxima a dos Unos e ir até eles conversar, imbuídos de Justiça, Compaixão e Sabedoria.
Apesar da escolha correta, se houve um fiasco na História do Mundo, foi esse.
Contemple a cena: surgiram três figuras desconhecidas, se disseram deuses - e por isso superiores - e pediram gentilmente para todos mudarem sua forma de viver. Qual a chance de dar certo? A cegueira nos tornou inocentes.
Não houve razão, sensibilidade ou argumentos que os convencessem da verdade apresentada. Os Unos jamais acreditariam que seu lar estava em risco, afinal eles controlavam tudo ao seu redor. Além disso, eles nunca haviam ouvido falar dos deuses, e isso foi uma escolha nossa. Eles reinavam absolutos no planeta que nós havíamos criado.
Nossos mensageiros foram expulsos e retornaram temerosos. De perto, os Unos eram confusos, caóticos, prepotentes, avarentos. Havia compaixão, mas também ganância. E todos eram muito diferentes uns dos outros, tamanha disparidade individual não ocorria em outros seres.
A discussão seguinte fez o debate sobre a criação do planeta, ocorrida eras atrás, parecer uma conversa civilizada. Os deuses gritavam de modo passional, tentando fazer sua voz se sobressair a dos demais. Não havia consenso, os caminhos eram muitos e havia um vínculo emocional jamais visto antes.
A solução mais simples era eliminá-los. Quantas vezes isso já não havia sido feito? Mas havia uma resistência profunda. Parecia que, sem os Unos, o planeta que nos entreteve por tantas eras perderia sua cor.
Até uma sugestão ganhar força: limitar suas capacidades. Ainda havia aqueles contrários a qualquer interferência, mas nessa altura algo precisava ser feito e essa ideia parecia trazer menos danos. Houve consenso.
Mas qual seria os contornos de uma solução que os desencorajasse a agir com superioridade sem acabar com seu brilho?
O vislumbre de mais uma discussão eterna inspirou o silêncio de muitos. A tristeza era mais profunda do que a urgência do tema. Havia muita dor em extirpar algo de um ser tão estimado. Mais uma vez, Garieli falou:
"A soberba dos Unos possui duas origens: a primeira é sua sintonia com a energia das coisas - sentir os elementos e manipular a natureza a seu favor. A segunda é sua capacidade de projetar e vislumbrar o que pode vir a ser construído de forma lógica. Um ser com ambas as habilidades se torna mais parecido conosco do que gostaríamos."
É sempre muito difícil desafiar um oponente tão parecido. A constatação fez com que todos se calassem até Thesils interromper o vazio, sugerindo deixar os Unos decidirem qual capacidade lhes era mais cara - uma ideia acolhida por todos.
Um dos três divinos enviado na primeira abordagem falou:
"Para mim, qualquer ser iluminado com o Saber e com a Verdade, possui as ferramentas para exercitar o pensar, ponderar e estabelecer a sua razão sobre todas as coisas. Porém, o que vi nos olhos dos Unos, foge de qualquer ponderação oferecida pelo Saber. Não gostaria de evidenciar tamanho absurdo, mas não enxergo caminho para o diálogo. Se eles deverão tomar uma decisão, somente o medo os fará agir."
Com pesar, os deuses decidiram abrir uma fenda profunda em uma área alagada, fazendo a terra tremer e exibir o poder que eles haviam ignorado. A abordagem agora não foi em uma gentil forma una. Os divinos apenas falaram para todos: o tempo para decidir seria medido em três tempestades. A cada tempestade a fenda se abriria mais. Se não houvesse uma decisão ao final do prazo, a última tempestade varreria tudo o que era móvel para dentro da fenda. E assim, o planeta recomeçaria.
Foram tempos difíceis para se observar a amada criação. Os Unos a princípio conversaram, debateram e argumentaram entre si para decidir o que os deixaria menos vulneráveis e o que era mais importante na sua visão de grupo. Em nenhum momento foi cogitado renunciar ao patamar de poder que haviam alcançado e então começaram a buscar maneiras de burlar a decisão a ser tomada.
A primeira tempestade danificou boa parte das construções dos Unos e o senso de urgência ficou mais latente. As conversas se tornaram discussões acaloradas, ainda longe de se chegar a um consenso. Após a segunda tempestade, uma grande guerra se iniciou.
Para surpresa dos deuses, os Unos começaram a se matar impiedosamente, usando tudo o que havia ao seu redor para se atacarem. A discordância se tornava cada vez mais bárbara e aquele mundo nunca chegou tão perto de ser dizimado.
Até que vozes vindas do planeta foram ouvidas. Pela primeira vez, havia Unos buscando os deuses. Acreditou-se, a princípio, ser o momento da decisão e todos rejubilaram, mas a guerra continuava acontecendo de maneira feroz. As vozes vinham em formato de sussurro, em súplica, cheias de dor. Eram mães pedindo clemência aos deuses para que restasse qualquer pedaço daquele mundo onde seus filhos pudessem crescer. Seus pedidos não faziam exigências, pelo contrário. Elas pediam que se extirpassem todas as capacidades de seus filhos, permanecendo apenas as forças para que pudessem voltar a conviver em harmonia com o seu lar.
Uma longa batalha retórica entre os deuses se iniciou. Era justo voltar atrás? Era digno seguir a diante? A terceira tempestade se aproximava e o recomeço de tudo era iminente. Assistir à derrocada daquela obra passou a não ser uma opção para os divinos.
A decisão tomada no calor desse momento foi motivada pela profunda conexão que os deuses desenvolveram com aquele ser tão cheio de erros. Havia culpa, havia dor e também uma certa esperança de encerrar aquele tormento.
A regra de não interferência foi banida - nunca mais os deuses permitiriam tal caos. Os Unos poderiam escolher individualmente o caminho a seguir, porém seriam divididos - os que escolhessem o caminho da energia nunca mais teriam acesso aos que escolhessem o caminho da lógica.
O planeta ganhou uma réplica gêmea em geografia, mas separados por planos e dimensões diferentes, para que nunca um pudesse alcançar o outro. A única diferença eram os Unos que habitavam cada um. Suas memórias sobre as capacidades anteriores foram completamente apagadas, para garantir que nenhum cairia na ganância de buscar tanto poder novamente.
Você deve conhecer aquele que hoje é chamado de Terra, mas talvez esteja ouvindo pela primeira vez sobre o outro, aquele que seus Unos nomearam de Greenfar.
Próximo capítulo:
Capítulo 1
Talvez essa não seja a história que você busca, mas é a que eu desejo contar. Sei que você adoraria saber o que se passa em Greenfar em tempos mais contemporâneos, mas tenha calma, chegaremos lá em outra ocasião.