A vila dos monges espadachins funcionava de maneira autônoma, no coração de uma densa floresta de árvores altas. Sua tradição na formação dos melhores espadachins do mundo datava de séculos atrás e atualmente o complexo era dividido em três grandes áreas: o mosteiro, com templos e casas onde os monges e noviços moravam e cumpriam seus deveres espirituais; a administração com hortas, pomares, criação de animais, oficinas, depósitos e casas para os trabalhadores da vila; e por último a área dos aprendizes, com espaços de treino, arenas, salas de aula, estoque de armas, um enorme refeitório e alojamentos. A vila proporcionava toda a infraestrutura necessária para uma vida em isolamento e focada na aprendizagem.
A aldeia mais próxima ficava há quase uma hora de distância e, nos 6 primeiros anos de treinamento, as saídas supervisionadas ocorria uma ou duas vezes por ano, para evitar mais distrações na educação dos jovens. Somente nas festividades dos solstícios de verão e inverno, aqueles que tinham famílias para quem voltar eram liberados para passar alguns dias em casa.
Aos 12 anos, a educação dos aprendizes mudava drasticamente.
Nessa ocasião, as crianças – não tão mais crianças assim – realizavam o segundo juramento. No primeiro, realizado aos 10 anos, os aprendizes se comprometiam com o respeito à espada. Agora, o compromisso era com a vida e com o ato de levantar sua arma pelos motivos certos.
Seus artefatos de aprendiz de cor marrom eram substituídos por de cor verde com seus nomes bordados, indicando estarem aptos a treinar entre si utilizando lâminas reais. Além disso, a cada três meses os jovens eram avaliados em torneios, onde os monges avaliavam as fortalezas e fraquezas de cada um, indicando exercícios e treinos específicos.
E, claro: os aprendizes que usavam os acessórios verdes podiam visitar a aldeia todos os finais de semana.
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Com ruas de terra e casas simples, o centro da aldeia era um lugar animado. Comerciantes de todos os tipos se reuniam ali para as feiras semanais, oferecendo comida, tecidos, adereços, utensílios, animais, cheiros e cores variados.
Nos finais de semana, os comerciantes locais dividiam as ruelas com vendedores itinerantes com seus carrinhos e barracas improvisadas sobre rodas, além de artistas de rua, pregadores e crianças que corriam tentando ganhar alguma coisa aqui e ali.
Apesar da liberdade para circularem como desejassem, os horários de retorno mantinham a disciplina da vila dos monges espadachins, mas o tempo era suficiente para que os aprendizes pudessem aproveitar uma certa autonomia.
Mesmo com todas as distrações oferecidas na visita, o assunto que dominava as conversas era a proximidade do primeiro torneio, que ocorreria em um mês.
“Qual será a espada que teremos que usar?” – perguntou Marcel para as meninas ao seu lado enquanto caminhavam em direção a uma barraquinha de doces.
“Provavelmente alguma lâmina grande, talvez de duas mãos. Praticamente só temos treinado com esse tipo de espada nas últimas semanas.” – respondeu Halene, passando a mão pelos tecidos de um carrinho colorido.
“Sobre o torneio eu não sei, mas me disseram que Mestre Rhano saiu enfurecido de uma aula de Técnica e Agilidade dos aprendizes menores, porque eles mal conseguiam manter o equilíbrio com espadas de duas mãos. Devem estar fazendo isso para garantir que a gente não passe vergonha no primeiro torneio.” – comentou Feara.
Quel caminhava ao lado dos amigos e começou a mordiscar o pingente redondo de seu colar, quando chegaram a barraca de doces favorita de Marcel.
“Você só faz isso quando está triste ou nervosa, o que houve, Quel? Acho que você precisa de um bolinho de cacau. Toma um.” – Halene pegou dois quitutes, pagou e estendeu um para a amiga.
Após a primeira mordida, a menina falou: “O torneio tem me deixado...tensa.” E continuou comendo, enquanto os amigos a olharam com estranhamento.
“Tensa?! Você é uma das melhores da turma. Você destrói toda vez que levanta a espada. Deu um pau nas simulações com Mestre Garoa. Se escolherem um tipo de espada que você curte, não vai ter pra ninguém!” – exclamou Feara.
“É diferente. Nas aulas eu não sinto um peso. Me sinto bem com a espada. Mas no torneio eu não tenho a opção de falhar. Sinto que quando todo mundo estiver olhando eu vou me sair pior do que os aprendizes que irritaram o Mestre Rhano.” – a menina parou por um instante e devorou o restante do doce. “Eu só queria dormir e acordar no dia seguinte do torneio.”
Os três amigos abraçaram Quel ao mesmo tempo, fazendo com que a menina sentisse um certo conforto em estar cercada de tanto amor.
“Não sei se é de grande ajuda, mas graças a esses maravilhosos artefatos de cor verde – disse Marcel enquanto indicava seus protetores de punho de forma cômica -, a gente agora pode estudar e treinar juntos, se isso te deixar mais tranquila.”
“Ou talvez você precise exatamente do contrário disso. Tem que relaxar mais, Quelzinha. Vir mais a aldeia. Eu notei que semana passada você preferiu os bonecos de treino a vir pra cá com a gente. Tem que descansar mais essa cabecinha e esquecer o torneio.”
“Dessa vez a Feara tem razão, Quel.” – e Halene recebeu um olhar atravessado da outra amiga. “Teremos torneios algumas vezes por ano pelos próximos 4 anos. A gente tem que se acostumar, por mais frio na barriga que dê. Além disso, é a nossa primeira vez, está tudo bem se a gente não for bem. Eu, pelo menos, já aceitei isso.” – e deu um risinho tentando animar a amiga.
Feara deu um pulo no meio dos amigos e falou: “E se te colocarem para lutar com o Druck?! Hein? Certeza que a sua tensão ia embora na hora!” – E gargalhou.
Quel fez uma expressão pensativa e irônica ao mesmo tempo, como se concordasse.
“Tá vendo, você só precisa do incentivo certo.” – concluiu a amiga empolgada. “Quando você estiver na linha de frente de um exército, vai ser bem diferente. Você vai amar!”
“Sobre isso...- Quel respondeu hesitante – tenho pensado bastante em...seguir como monge na vila, após o treinamento.”
Os três amigos ficaram boquiabertos com aquela frase e começaram a questioná-la ao mesmo tempo.
“Como assim, Quel?”
“Tá doida?”
“De onde você tirou isso?”
Feara colocou suas mãos nos ombros de Quel e falou: “Você é de longe a melhor de nós. Você vai poder escolher para onde vai depois do treinamento. Por que você vai ficar na vila?!”
“Os melhores espadachins que conhecemos estão lá. E trabalham para que outros de nós possam aprender e fazer o que precisam pelo mundo. Me parece tão digno quanto qualquer exército ou missão distante.” – respondeu Quel na defensiva. “Além disso...é a minha casa.”
Os amigos se entreolharam sem saber como responder, até que Halene achou melhor encerrar o assunto: “Ainda temos alguns anos para tomar essa decisão e agora você precisa lidar com esse medo bobo do torneio. Talvez Mestre Hígo possa te ajudar a entrar em equilíbrio, que tal?”
A menina concordou e o quarteto se distraiu com um aglomerado de pessoas que se reunia para assistir às ilusões de um grupo itinerante. Quel seguiu os amigos, mas aquele pensamento pesado não sairia da sua cabeça tão cedo. Ela faria uma visita ao centro vitárico para falar com Mestre Hígo, mas antes daria alguns bons golpes em um boneco de treino.
Novos capítulos toda sexta-feira 🌻
Próximo capítulo:
O que já rolou em Greenfar:
Prólogo: O começo de Greenfar
Capítulo 1: Sozinha na floresta
Capítulo 2: Marcas
Capítulo 3: Zelas
Capítulo 4: Escolhidos?
Capítulo 5: Tempestades
Capítulo 6: Ghraul
Capítulo 7: Ramira
Capítulo 8: Quase 10
Capítulo 9: Que na busca permaneçamos
Capítulo 10: Enfim, lâminas.
Capítulo 11: Espada de honra