Quando despertou assustada, Quel demorou alguns instantes para reconhecer que estava em uma das camas do centro Vitárico. Ao seu lado, Zer abriu os olhos do estado meditativo em que se encontrava e sorriu.
“O que aconteceu, Zer?”
“Seu corpo decidiu não ouvir meus conselhos e descarregou altas doses de adrenalina durante o torneio. Mestre Hígo a manteve adormecida por algumas horas para que você se reequilibrasse.”
Uma mistura de vergonha, tristeza e frustração invadiram o olhar baixo da menina. O monge puxou sua cadeira para perto de Quel e acariciou sua cabeça, da mesma maneira que fez tantas vezes quando ficava doente.
Uma tentativa de sorriso apareceu e logo se foi. “Sinto que fui fraca e não dei conta de um mísero torneio. Como posso me tornar espadachim assim?” – o questionamento esbarrava na beira de um poço de raiva que Quel ainda não tinha acessado dentro de si por completo.
“Você precisa exigir menos de si mesma, minha pequena. Um bom espadachim conhece suas fortalezas, mas também os seus limites. Você não precisa ganhar todas as lutas e sim tirar o melhor aprendizado que puder de cada uma.”
Quel olhou para Zer com uma expressão vazia, tentando tornar aquelas palavras uma verdade para si, quando Mestre Hígo se aproximou.
“Como está se sentindo, mocinha?” – Havia algo na presença e na voz de Mestre Hígo que sempre tornava o ambiente mais acolhedor.
“Me sinto bem, descansada.” – e complementou baixinho: “E feliz que tenhamos meses até o próximo torneio.”
Hígo e Zer se entreolharam em concordância, então o primeiro falou: “E até lá, você precisa pegar leve. Mestre Zer e eu concordamos que você não deve realizar treinos extras e vai ter aulas com Mestre Rhano de Concentração e Equilíbrio. Mandatórias.”
Quel arregalou os olhos incrédula.
“Os picos de adrenalina que seu corpo produziu foram tão altos poderiam ter deixado sequelas em uma pessoa com uma má condição de saúde. Mas você é jovem, saudável e totalmente capaz de gerenciar esses impulsos, com meditação e autocontrole. E o responsável por te ajudar nisso será o Mestre Rhano. Ele já está ciente e concordou.”
Quel se afundou um pouco na cama e olhou para Zer com uma expressão de descontentamento exagerada. “Não adianta fazer careta.” – retrucou o monge sabendo que a menina estava reclamando só por reclamar.
“Precisa ser com Mestre Rhano? Se vocês querem controlar minha adrenalina, definitivamente não acho que ter aulas com ele seja uma boa ideia.” – argumentou a menina.
“Se já consegue argumentar dessa forma, tenho certeza de que está 100% recuperada e liberada para dar notícias àquelas duas meninas que não saíram da porta do centro Vitárico desde que você entrou.” – Mestre Hígo indicou com a cabeça os rostos amassados de Feara e Halene na janela lateral da entrada, tentando ver o que acontecia lá dentro.
“Minha pequena – disse Zer enquanto a jovem se levantava apressada – Ouça com atenção o que Mestre Rhano vai te ensinar. Ele pode ser duro, mas é o melhor nesse assunto. E assim como nós, também quer o seu bem.”
A menina respirou fundo, abraçou e deu um beijo na bochecha de Zer. “Pode deixar. Vou tentar.” E saiu correndo para encontras suas amigas.
“Vai dar certo, não vai, Hígo?”
“Vai sim, Zer. Vai sim.”
___
Sem saber como reagir, as amigas olhavam para Quel de forma aflita e, ao mesmo tempo, atenta quando a menina as encontrou do lado de fora do centro Vitárico.
“Foi um pico de adrenalina, está tudo bem. Quero dizer, menos o tratamento: aulas extras de Concentração e Equilíbrio com Mestre Rhano. Espero que sejam mais fáceis que o torneio.”
Feara e Halene desceram os ombros tensos e abraçaram a amiga com força. Os olhos de Halene se encheram de lágrimas. “Não desmaie mais, por favor. Eu só me recordo de ouvir alguém falando que você estava caída e ver o Mestre Zer praticamente voar te carregando para cá. Você estava apagada, Quel.”
Com um olhar compassivo, Quel a abraçou mais uma vez. “Está tudo bem, de verdade. Eu vou aprender a lidar com os torneios, prometo.”
“100% mesmo?” – perguntou Feara.
“100%.” – respondeu sorrindo.
“Então podemos comentar sobre as três vitórias absolutas de Quel, a lenda dos aprendizes?” – Feara tinha o dom de melhorar o clima de qualquer situação, fazendo as duas amigas abrirem um sorriso largo.
“Vou comemorar quando eu conseguir esse feito sem passar mal. E vocês, como foram?”
“Eu perdi minhas três lutas, acho que a minha lista de exercícios vai ser longa...” – Halene fez uma expressão exagerada de desânimo enquanto as três caminhavam para seus alojamentos.
“Eu perdi duas lutas...mas ganhei do DRUCK!” - E Feara deu uma gargalhada gloriosa.
“COMO ASSIM?!” – perguntou Quel com uma enorme empolgação.
“Ele é um imbecil. Tinha acabado de vencer a Raela e estava se achando. Entrou na arena se gabando e falou: ‘Opa, mais uma menina pra minha conta!’ Eu não ia deixar barato, ainda mais com aqueles amigos idiotas dele rindo fora do círculo. Então eu respondi: ‘Ou talvez você entre para minha conta do centro Vitárico. Já mandei o Marcel pra lá...e olha que ele é meu amigo.’ E indiquei com o queixo na direção onde o Marcel estava, segurando o braço e sendo apoiado pelo Monge Hígo rumo à sala de tratamento.
“Você machucou o Marcel em combate, Feara?!” – Quel olhou em choque.
“É claro que não. Mas eu sabia que ele tinha ficado com câimbra antes da luta e tinha ido fazer uma massagem. Só me aproveitei da cena para baixar a bola do Druck. Os amigos dele pararam de rir na hora e ele ficou petrificado, vocês tinham que ver!”
As risadas e gritinhos de euforia das três podiam ser ouvidos do outro lado das arenas, agora vazias e sem as marcações dos círculos usados no torneio.
“Fe, você é nossa heroína. Um dia quero ser tranquila igual a você.” – disse Quel ainda rindo e dando o braço pra amiga.
A caminhada continuou, quando Halene disse: “Eu também queria essa tranquilidade, e a sua habilidade, Quel. Acho que teria me mijado se tivesse que enfrentar o Druck.”
“Se a gente quiser se dar bem no próximo torneio – eu e Hal vencermos alguma luta e você, Quel, chegar inteira até o final – talvez devêssemos começar a treinar juntas, o que acham?”
“É verdade! Eu quero aprender a entrar na arena com a sua garra, Quel. E a Feara pode te ajudar a ficar mais relaxada.”
A ideia era ótima, mas havia um problema.
“Mestre Hígo disse que eu não devo fazer treinos extras. Devo me poupar por um tempo.” – o desapontamento era visível.
“Não são treinos extras – disse Feara com certa malícia – são apenas estudos. Você, como uma aprendiz, não pode deixar de estudar, concordam?”
Halene e Quel se entreolharam de forma suspeita.
A exaustão no torneio não foi nada agradável, mas Quel se lembrou da sensação do começo da luta. Daquele gosto bom da adrenalina emergindo, da garra crescente ao analisar o oponente e montar uma estratégia antes do primeiro golpe. Da força que a impulsionava a levantar a espada e partir para cima.
Podia não ser prudente, mas ela queria mais daquilo.
“É, mas...” – antes que Hal pudesse contrariar a amiga, Quel a interrompeu: “Algum problema se esses estudos forem feitos...de forma mais...discreta?”
Halene reprovou as duas amigas com o olhar, mas já era tarde demais. O sorriso cúmplice de Feara e Quel mostrava que a decisão havia sido tomada.
Conformada, Hal falou: “Ok...mas eu vou ficar de olho em você, Quel. A qualquer sinal de problema, eu conto para o Mestre Zer.”
“Combinado, guardiã – respondeu Quel levando a mão direita fechada ao peito, fazendo o cumprimento dos espadachins com certa ironia – amanhã à noite, 1h depois do primeiro toque de recolher, a gente encontra um lugar para ES-TU-DAR.”
“E no próximo torneio, Hal, quem vai vencer do Druck é você.” – finalizou Feara com uma piscadela para a amiga.
Estamos de volta!
Novos capítulos toda sexta-feira 🌻
Próximo capítulo:
#15 - Estrelas negras
“Por isso, irmãs e irmãos, devemos permanecer na busca. Nossa árdua jornada começou 10 anos atrás, quando eu e meus irmãos recebemos a missão divina de abençoar nossas crianças e guiar mais e mais pessoas ao caminho das três estrelas. Por mais difícil que seja, as retribuições dos deuses são generosas. As três estrelas nos guiaram, nos protegeram e prov…
O que já rolou em Greenfar:
Prólogo: O começo de Greenfar
Capítulo 1: Sozinha na floresta
Capítulo 2: Marcas
Capítulo 3: Zelas
Capítulo 4: Escolhidos?
Capítulo 5: Tempestades
Capítulo 6: Ghraul
Capítulo 7: Ramira
Capítulo 8: Quase 10
Capítulo 9: Que na busca permaneçamos
Capítulo 10: Enfim, lâminas.
Capítulo 11: Espada de honra
Capítulo 12: Pensamentos intrusivos
Capítulo 13: Batalhas dentro e fora