No encontro seguinte, as meninas foram categóricas. “Se quiser continuar conosco, nada de agir como mão-de-geleia novamente.” – disse Feara, e complementou: “A não ser que você queira que a gente conte para seus amigos o quão alto suas pernas foram pro ar quando você caiu na sua derrota para Quel.”
“E quem disse que vão acreditar nisso?” – Druck desdenhou.
Com um sorriso animado e ingênuo, Halene levantou uma folha de papel do seu caderno: “Sua lista de exercícios pós-torneio! Só temos acesso a ela, porque você nos deu...o que ajuda a confirmar a história.”
A virada de olhos do menino foi vista como um aceite.
“Inclusive, vamos repassar alguns fundamentos e exercícios de equilíbrio hoje.” Halene sempre ficava animada nos dias que orientava os estudos. “Quel, quantos tipos de espada você trouxe?”
A menina estava quieta até o momento. As três já haviam comemorado muito a luta do último encontro, relembrando movimentos e dando gritinhos excitados de histeria, mas ela não queria pisar ainda mais no orgulho ferido de Druck.
“Temos pelo menos 6 espadas com pesos bem diferentes, incluindo uma adaga da misericórdia e uma belíssima Bastarda. É uma de suas preferidas, não, Druck?” – e sorriu de forma contida, tentando uma abordagem amigável.
O jovem pegou a espada que estava apoiada no tronco caído e a levantou na altura dos olhos, avaliando a lâmia e o fio. “Sim, me equilibro bem com esse tipo de espada, mas considerando o tema de hoje, vou precisar exercitar com as espadas menores.”
As três meninas se entreolharam com uma surpresa positiva, era a primeira vez que o menino se mostrava interessado de verdade.
“Se vocês ficarem com esses olhares o tempo todo, vão me dar um bom tempo para cochilar durante as leituras infinitas da Halene.” – a menina reagiu dando um tapão em Druck, mas suas costas largas para um menino de quase 13 anos amorteceram o golpe e ele riu.
“Ok, vamos começar e evitar a vergonha de perder combates por tropeçar em um tronco.” – Halene deu um riso irônico para o garoto e começou a folhear seu caderno.
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A nova postura de Druck mudou radicalmente o ritmo dos encontros. Ocasionalmente ele ainda bocejava nos debates teóricos (tomando cotoveladas de quem estivesse mais perto) e continuava ouvindo todo tipo de apelido de Feara nos treinos livres, mas a grande diferença ocorreu nas práticas técnicas.
Ele era melhor do que as meninas imaginavam e a antiga rixa foi se tornando uma competitividade cúmplice, onde um ainda queria vencer o outro, mas Druck se mostrava cada dia mais aberto a aprender com Quel.
“Vamos repetir essa sequência, mas você não pode me deixar finalizá-la, ok? Veja onde você consegue encaixar um contragolpe.” – instruiu a jovem para Druck.
As espadas curtas começaram a tilintar e em poucos segundos, o menino parou a lâmina a poucos centímetros da cintura de Quel, a pegando desprevenida.
“Sequências altas deixam o dorso desprotegido. Em uma luta, eu não precisaria de um contragolpe, eu teria vencido.” – havia arrogância, mas também uma certa gentileza na colocação de Druck. Quel foi obrigada a concordar.
“Apesar de estar certo, preciso admitir que é muito melhor treinar com uma pessoa de verdade do que com alguém que se passa por um boneco de treino.” – o comentário de Quel fez o menino rir sem-graça.
“Quelzinha e Druckito, o papo está ótimo, mas já está tarde e eu quero descansar essa noite para a cerimônia das espadas de honra amanhã! Vamos encerrar por hoje?” – bradou Feara começando a juntar as lâminas espalhadas pela clareira.
“Não me chama de Druckito...por favor.” – a voz do jovem era séria e as três meninas olharam curiosas. Ele nunca havia reclamado de nenhum dos apelidos bizarros que Feara o chamava.
Constrangido com a própria reação, Druck complementou hesitante: “Era como minha mãe me chamava. Ela faleceu.” A informação foi novidade para as três e por alguns instantes um silêncio pesado pairou na clareira. Na verdade, as meninas não sabiam nada a respeito do novo companheiro de estudos.
Para quebrar o clima, Feara mudou de assunto: “Ok, ‘Mãozinha’ então, em homenagem ao seu melhor apelido: Mão-de-geleia!” e a tensão se dissipou. “Nos vemos amanhã na festa!”
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Se houvesse um grande feriado na vila dos monges espadachins, esse dia era a Cerimônia da Espada de Honra.
Toda a vila se mobilizava nos preparativos para a ocasião, sob a orientação de Ramira. Mesmo já tendo preparado mais de 20 vezes, ela sempre beirava a loucura nas horas que antecediam o evento. Ela sabia que quando um aprendiz escolhia sua Espada de Honra, ele se tornava um espadachim de verdade e tudo precisava estar impecavelmente organizado com antecedência para que ela pudesse se entregar a emoção do momento - leia-se: chorar como se não houvesse amanhã.
Outro ponto alto desse dia era o anúncio dos três aprendizes que melhores se classificaram nos dois anos dos torneios competitivos e receberiam, na cerimônia do ano seguinte, suas Espadas de Honra forjadas sob medida.
Os ânimos na vila ficavam tão agitados que não havia aulas e Ramira canalizava a ansiedade dos aprendizes os colocando para realizar todo tipo de tarefa, como montagem de mesas, acendimento de tochas e fogueiras, varrer todas as áreas abertas e um pequeno batalhão designado a polir as lâminas do arsenal da vila.
“Eu realmente não entendo por que todas as espadas precisam ser polidas para a Cerimônia. Elas já estão impecáveis.” – resmungou Marcel enquanto passava um pano fino em uma Spatha. Toda a turma de Quel havia sido alocada nessa função.
O arsenal era um dos prédios mais antigos da vila. O galpão de dois andares com um pé direito alto já havia servido como um estábulo e hoje abrigava as milhares de lâminas usadas na formação dos espadachins, todas devidamente catalogadas e acomodadas conforme seu formato e uso, como uma enorme biblioteca de paredes brilhantes.
“Porque, Sr. Marcel, daqui a três anos quando for a sua vez, você também vai querer encontrar sua espada te esperando de maneira impecável, correto?” – A voz de Ramira ecoou sem que ela reduzisse seu passo, indo em direção aos fundos do lugar.
“Não se preocupe, Marcel, ainda temos muitos torneios pela frente.” – Quel riu do amigo que apenas virou os olhos.
“Eu tenho certeza de que a Ramira tem a audição mais aguçada que alguns monges. Nada escapa dela.” – comentou Feara para os amigos, sem interromper o polimento da espada em suas mãos.
Halene observou até que a administradora da vila saísse do arsenal e disse casualmente: “Devem ter mais punhais no andar de cima. Fe e Quel, me ajudam a buscá-los?”
As meninas deram uma boa olhada nas lâminas em suas mãos e as colocaram em seus respectivos pedestais antes de seguirem a amiga. Assim que terminaram de subir as escadas, Halene se arrependeu da proatividade. Havia mais espadas no segundo andar do que embaixo.
“Sem desânimo, Hal. Nada vai me fazer perder a festa de hoje!” – e Feara seguiu convicta até a primeira estante, já retirando uma espada atrás da outra.
“Falando na festa...- disse Halene se juntando à amiga na tarefa -...estive pensando em uma coisa.” Quel e Feara continuavam empilhando punhais quando a amiga hesitou em continuar.
“Desembucha, Hal.” - as amigas falaram ao mesmo tempo.
“Será que o Druck vai falar com a gente hoje na festa?” – a menina teve que se aproximar das amigas para que elas pudessem ouvir sua pergunta sussurrada.
As três se olharam buscando a resposta umas nas outras, mas os semblantes só apresentavam incógnita.
“Eu acho que...não? – Feara buscava alguma certeza nas outras duas.
“Eu também acho que não, Hal, mas não sei. Eu concordo que é esquisito fingir que a gente não se fala direito, mas, vai saber...” – concluiu Quel.
“Opa!” – Feara apoiou cuidadosamente as espadas que estavam em seus braços em uma prateleira lateral e se aproximou de Halene. “Tá achando nosso colega de estudo interessante, Halzinha?” – a malícia transbordava do sorriso da menina.
“Shhhh, Feara, ele tá lá embaixo, sabia? Mas vai dizer que ele não ficou muito mais interessante...depois que começou a participar direito do grupo? – sua voz saiu tímida. Vendo que o olhar de Feara não parecia concordar, Halene buscou apoio na outra amiga. “Quel...?”
Feara estava pronta para uma repreensão então Quel decidiu assumir o risco, além de provocar a amiga: “Um pouquinho mais interessante ele ficou, não posso negar...” – e soltou uma risada contida para Halene, que também começou a rir.
“Não acredito em vocês. Podem ficar com ele e dividir entre as duas. Ele parece um boneco troncho, gente.” – e voltou a empilhar nos braços as espadas que havia deixado na prateleira, incrédula com a opinião das amigas sobre o menino.
“Quando ele não é babaca, ele é legal, Fe...” – Halene sabia que a amiga caia nesse tipo de pilha e sua indignação era um deleite cômico.
“Eu sinceramente, espero que vocês duas só estejam falando isso pra me provocar. Se não, eu faço questão de mostrar gente “interessante” de verdade hoje na festa pra vocês.”
Quel e Halene tentavam segurar o riso. “Uhhh...olha como tá saidinha essa Feara.” – atiçou Quel.
“Vai estar cheio de aprendizes interessantes desfilando com suas espadas de honra e vocês falando do Mãozinha de Geleia.” – a indignação em seu semblante divertia cada vez mais as amigas. “Vocês viram que a Rana Stel vai receber uma Montante forjada para ela? MUITO mais interessante. O Geralto me falou que vai escolher uma adaga curvada e quer uma atribuição como espião. Isso, sim, é interessante.”
“Ok, ok...vamos ver gente mais interessaaaante hoje, não é Haaal? – o tom irônico de Quel fez a amiga quase derrubar algumas espadas de tanto rir. “Tá booom, Feee...? Se acaaaalme...” – e deu empurrãozinho com o ombro em Feara para descerem, enquanto a jovem ainda resmungava.
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Próximo capítulo:
#21 - Que comecem as celebrações
Engana-se quem pensa que o ponto alto da formação dos espadachins é a formatura. Na ocasião, a celebração é modesta. Cada jovem recebe o broche com a insígnia preta dos monges espadachins – o símbolo que identifica quem concluiu sua formação na vila – e a carta de atribuição – o convite formal para se juntar a uma missão ou exército. Há um clima solene …
O que já rolou em Greenfar:
Prólogo: O começo de Greenfar
Capítulo 1: Sozinha na floresta
Capítulo 2: Marcas
Capítulo 3: Zelas
Capítulo 4: Escolhidos?
Capítulo 5: Tempestades
Capítulo 6: Ghraul
Capítulo 7: Ramira
Capítulo 8: Quase 10
Capítulo 9: Que na busca permaneçamos
Capítulo 10: Enfim, lâminas.
Capítulo 11: Espada de honra
Capítulo 12: Pensamentos intrusivos
Capítulo 13: Batalhas dentro e fora
Capítulo 14: Relaxe e lute
Capítulo 15: Estrelas negras
Capítulo 16: Barulhos
Capítulo 17: Golpe baixo
Capítulo 18: Tudo doía
Capítulo 19: Raiva e orgulho