Quando Quel chegou ao dormitório já era noite e suas amigas pularam em sua cama para saber o que tinha acontecido.
“Eu não acredito que aquele desgraçado mentiu tão descaradamente assim. Eu vou descer a mão na cara dele amanhã, porque seu eu usar uma espada, eu mato.” – vociferou Feara.
“Como ele foi infantil, não é possível. Será que não tem um bom motivo para ele ter feito isso?” – tentou defender Halene.
“Talvez, mas pouco importa. Não sei se quero falar com ele de novo.” – ponderou Quel.
“A gente precisa conversar com ele amanhã, Quel. Isso não pode ficar assim. Ele enganou a nós três. Além disso, ele estava super preocupado com você depois do torneio, nós te procuramos em todo lugar.” – Halene fez uma pausa – “E a preocupação dele parecia verdadeira.”
“Devia estar preocupado porque sabia que tinha sido desmascarado, isso sim.” – resmungou Feara.
Quel olhou para as amigas com carinho. Ela sabia que o certo era conversar com Druck, mas alguma coisa dentro dela ainda doía e ela não achava que essa conversa aplacaria esse incômodo. Essa decisão ficaria para o dia seguinte.
“Vocês já devem saber que minhas lutas foram um fracasso, mas e vocês, com foram?”
“Estamos empatadas, Hal venceu duas e eu também. Nossos treinos noturnos estão compensando!” – celebrou Feara.
“Falando nisso, o Zer me liberou para treinar de novo! Podemos voltar a usar as áreas de treino. Nada mais de longas caminhadas carregando espadas ou de encontros escondidos.”
A dupla não celebrou como Quel esperava.
“Achei que seria uma ótima notícia.” – a menina olhava para as amigas, intrigada.
“É uma notícia boa, mas...acho que eu gostava de caminhar floresta adentro à noite. Tenho carinho pela nossa clareira de estudos e os momentos que vivemos lá.” – Halene soou saudosa.
“Eu concordo. Foram dias muito divertidos. Além disso, ninguém via o que estávamos treinando. Uma baita vantagem competitiva.” – Feara deu seu conhecido sorriso malicioso.
Os olhos de Quel ficaram tristes por um instante. Ela concordava com as amigas, mas boa parte daquelas memórias felizes estavam agora sob o fino véu da decepção que a menina ainda sentia. Como uma coisa tão imbecil podia estar a deixando tão desolada?
Halene se aninhou mais perto da amiga e passou o braço em volta do seu obro. “Amanhã vamos conversar com o Druck e resolver isso. E quem sabe a gente não estuda na floresta de vez em quando, né Fe?”
“Vai ficar tudo bem, Quelzinha.” Feara se juntou as outras duas. “A gente dá um soco no Druck amanhã e resolve.” – a gentileza irônica na voz da menina fez o clima ficar mais leve.
“Podemos dormir então? O dia foi pesado.” – o corpo de Quel pedia descanso, apesar de sua mente estar a milhão.
“Achei que você nunca ia falar isso, tô quebrada das lutas. Preciso da minha cama urgente.” – Feara se levantou, seguida de Halene, que falou antes de deixar Quel:
“Pelo menos você superou o desmaio.” – e deu uma piscadela para a amiga antes de se acomodar em sua cama.
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Durante a noite, Quel entendeu por que não queria confrontar Druck. Aquela conversa demandaria firmeza e ela sabia que quando começasse a falar, suas lágrimas traí-la.
Ainda assim, suas amigas a convenceram de encará-lo logo depois do café da manhã.
“Para de enrolar com esse queijo, Quel. O Druck já viu a gente e tá vindo pra cá. Posso dar um soco antes da gente começar? Só pra aquecer.” – Feara buscou algum tipo de apoio no olhar das amigas, mas sem sucesso.
Quel engoliu a contragosto o último pedaço da sua refeição e ao se virar para levantar-se dos bancos compridos do refeitório, Mestre Rhano estava atrás dela.
“Agora que terminou de comer, podemos começar sua aula?”
Quel o olhou confusa: “Achei que após o torneio elas não seriam mais necessárias...e nunca tivemos aulas tão cedo, Mestre.”
“Agora suas aulas começam de verdade. Venha comigo.” – e saiu apressado contando que a menina o seguiria.
Druck já estava perto. Halene e Feara deram um olhar de pressa para Quel, mas ela não podia deixar Mestre Rhano esperando - aquilo parecia até mesmo providencial.
“Ahm...conversem com ele. Mestre Rhano me convocou, preciso ir e depois vocês me contam.” – a menina se virou dando passadas largas e aliviadas para se juntar ao monge na saída do refeitório, deixando suas amigas e Druck com um olhar de não entendimento, enquanto se afastava.
Ao chegarem na área de treino, Mestre Rhano se dirigiu ao estande de espadas e disse, enquanto escolhia uma arma: “Assisti suas lutas de ontem.”
Mesmo não vendo os olhos do mestre, Quel ficou desconcertada. “Ainda não recebi as recomendações de exercícios, mas acredito que será uma longa lista...”
O monge se virou para Quel com duas espadas medianas nas mãos.
“Sim, sem dúvida será.” Seu olhar parecia...animado? E continuou: “Mas acredito que nenhum exercício vai tratar do que de fato a fez lutar daquela maneira.”
A sobrancelha direita de Quel se elevou intrigada.
“Para alguns pode parecer que você superou o desequilíbrio da sua adrenalina do primeiro torneio, mas ainda não sei a extensão do seu controle sobre isso. O que vi ontem, foi ela ser substituída por violência em um acesso bruto de raiva.” - O ancião segurava casualmente o cabo das espadas com suas lâminas voltadas para baixo enquanto via o rosto perplexo da menina encarando a leitura acertada que o monge fez do que havia acontecido.
“O torneio de ontem foi uma pequena amostra do que acontece ao deixar sua fúria sem controle. Por sorte não houve danos. Mais do que controlar a adrenalina, você precisa manejar essa violência como se fosse a sua espada: com técnica, controle e concentração. E vamos começar a fazer isso agora.” E jogou uma das espadas para Quel.
A menina se posicionou corretamente com a arma nas mãos, mas decidiu perguntar antes de começarem:
“Então nossas aulas agora serão de luta e não mais de meditação?”
“Ótima pergunta! Acredito que sim, conversei hoje pela manhã com Mestre Zer e concordamos que o treino necessário agora é outro.” Em um tom de voz casual, o monge continuou: “Ele também comentou o motivo de sua fúria no torneio e achei totalmente justificado. Aquele menino Druck é bastante complicado. Todos nós já o ouvimos fazer comentários jocosos sobre meninas, e não me surpreendi quando o ouvi na semana passada dizendo que estava te espionando para vencê-la no torneio. Ainda teremos bastante trabalho com ele.” Rhano olhou para baixo com um suspiro de desaprovação, mas logo em seguida ergueu um olhar cirúrgico para Quel e perguntou: “Podemos começar?”
A casualidade com que Mestre Rhano trouxe aquela informação fez os músculos do pescoço de Quel se enrijecerem.
A raiva, a dor e a decepção, subiram como um soco e colidiram com a força descomunal necessária que Quel precisou exercer para não deixar o tsunami de lágrimas em seus olhos vazarem. Aquela frase horrorosa ecoava de novo em sua cabeça “...aquilo tudo era mentira.”
Sem tempo para processar o que se passava, Mestre Rhano fez o primeiro movimento da luta e Quel atacou por instinto, sendo facilmente bloqueada pelo experiente mestre.
Em cada golpe, Quel depositava toneladas de dor, tristeza, desgosto e Mestre Rhano fazia quase esforço nenhum para se defender. Em pouco tempo, a menina estava visivelmente exausta.
“Você percebe que sua agressividade te faz previsível?” – disse o monge ao desarmar Quel com um movimento ágil. A arma da menina voou para longe e ao caminhar para buscá-la, as lágrimas desceram sem controle. Ela retornou à posição de luta tentando se recompor da melhor maneira possível.
O monge a olhou com satisfação.
“Você está com raiva e eu não estou aqui para abrandá-la. Está com raiva do Druck? Ótimo, não a controle. Traga essa raiva pra mim.”
Como se vislumbrasse um armário enorme, Quel entendeu o recado. Era hora de abrir todas as portas que ela passou a vida toda mantendo cuidadosamente trancadas.
Entre lágrimas, golpes, adrenalina, força bruta e dor, a menina golpeava sem dó o mestre. Por mais barulho que as lâminas fizessem, o rosto do ancião permanecia neutro em meio ao tornado que avançava em sua direção.
“Comece a pensar no que você está fazendo, Quel.”
“Relembre as sequências que você conhece.”
“Use sua raiva com inteligência.”
Por um bom tempo, as instruções de Mestre Rhano eram apenas borrões - comandos impossíveis de serem compreendidos em meio ao barulho das lâminas se chocando. Parecia uma luta de resistência: os braços de Quel doíam de cansaço, mas ela não queria parar. O mestre, em contrapartida, se manteve todo o tempo em postura defensiva, amortecendo os movimentos brutos da menina de forma despretensiosa, como se aguardasse alguma coisa diferente acontecer.
“Chega! Por favor...” – Quel encostou a ponta da espada no chão e apoiou suas mãos no cabo. A respiração ofegante, a pele vermelha e as lágrimas misturadas com suor refletiam sua exaustão.
Quel estava em frangalhos, por dentro e por fora. Um abraço, ela só precisava de um abraço, mas o mestre a olhava impassível. Ela não conhecia aquele lugar de dor, raiva e solidão. Sempre houve alguém por perto para acudi-la. Zer, Ramira, amigos, aprendizes. O olhar frio de Mestre Rhano provocava sensações novas e muito difíceis de traduzir. Ela queria chorar e gritar ao mesmo tempo.
“Na próxima aula, traga tudo isso de novo. Exceto as lágrimas.” – com um movimento ágil, o monge colocou sua espada no suporte e deixou a menina no meio da área de treino.
Ao se ver sozinha, Quel escolheu gritar.
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Próximo capítulo:
#26 - Diário de Mestre Rhano
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O que já rolou em Greenfar:
Prólogo: O começo de Greenfar
Capítulo 1: Sozinha na floresta
Capítulo 2: Marcas
Capítulo 3: Zelas
Capítulo 4: Escolhidos?
Capítulo 5: Tempestades
Capítulo 6: Ghraul
Capítulo 7: Ramira
Capítulo 8: Quase 10
Capítulo 9: Que na busca permaneçamos
Capítulo 10: Enfim, lâminas.
Capítulo 11: Espada de honra
Capítulo 12: Pensamentos intrusivos
Capítulo 13: Batalhas dentro e fora
Capítulo 14: Relaxe e lute
Capítulo 15: Estrelas negras
Capítulo 16: Barulhos
Capítulo 17: Golpe baixo
Capítulo 18: Tudo doía
Capítulo 19: Raiva e orgulho
Capítulo 20: Mãozinha
Capítulo 21: Que comecem as celebrações
Capítulo 22: O colar
Capítulo 23: Mentiras
Capítulo 24: Mais decepções