Ramira sempre caprichava na refeição que antecedia o primeiro dia de aula da Formação de Guerra. Os jovens de acessórios pretos se sentiam ansiosos e secretamente com medo.
Ao iniciar o último ano da formação espadachim, ninguém comentava o que acontecia nas aulas. Alguns diziam que o silêncio vinha de um terceiro juramento secreto, outros suspeitavam ser tão difícil que ninguém falava sobre.
Além dos mestres mais experientes, todos os anos alguns espadachins lendários formados na vila se juntavam ao grupo de professores do último ano, chamando a atenção dos aprendizes quando circulavam pelas áreas comuns com suas vestimentas de exércitos e reinos distantes.
“Quel, você conhece aquele lendário conversando com o Zer?” – perguntou Marcel enquanto caminhava junto à jovem e sua amiga Halene em direção às áreas de treino mais afastadas, onde ocorreria a primeira aula.
“Não faço ideia, mas eles parecem ter intimidade, não? E ele tem uma quantidade absurda de medalhas e penduricalhos em sua farda.” – respondeu Quel curiosa.
Halene olhava para os homens tentando se lembrar de alguma coisa. “Além-mar!”, disse em um rompante. “Sua farda me lembra os uniformes dos exércitos de Além-mar.”
Quel e Marcel se olharam surpresos: “Como você sabe disso?”
“Um dos requisitos de Mestre Ferreiro Melin para me aceitar como aprendiz na forja depois da formatura é conhecer as espadas de diferentes regiões.” – respondeu a menina.
“Por isso sua cama vive aquela bagunça de pergaminhos diferentes!” – exclamou Quel, e a amiga fez que sim com a cabeça, não parecendo muito feliz com as horas de sono trocadas por estudos minuciosos de lâminas e guerras distantes.
“Se eu estou certa ou não, saberemos em breve.” – Halene notou Zer e o espadachim visitante andando na direção do grupo.
“Halene, Marcel e minha pequena Quel. Esse é Fordil Rassi, um dos grandes espadachins formados aqui na vila. Ele vai conduzir as primeiras aulas da Formação de Guerra de vocês. Tenho certeza de que suas experiências serão muito ricas no seu aprendizado.” – Zer parecia animado.
“Espero estar à altura de tudo o que aprenderam com Mestre Zer. Sem ele, eu não teria chegado aonde cheguei.” – as palavras de Fordil surpreenderam o trio.
“Você foi aluno do Mestre Zer?” – perguntou Marcel com a testa franzida. As idades pareciam muito próximas para uma relação de mestre e aprendiz.
Os homens deram um riso contido e Fordil falou: “De certa maneira fui sim. Ele era um destaque na nossa turma e passou muitas noites treinando comigo para me ajudar nos torneios. O dom de ensinar já estava com ele desde cedo. Ninguém se surpreendeu quando ele recebeu a “Céu de Helena” das mãos do Mestre Ferreiro Rion. Ele era o melhor de nós.”
Os três jovens disseram quase em um uníssono: “Céu de Helena?”
“Zer, sua espada não se chama ‘Celena’?!”, questionou Quel.
Chegou até aqui?
Uau, obrigada!
Me conta o que você está achando até agora?
É rapidinho!
O monge manteve sua postura serena, mas seu olhar fuzilante fez o amigo gargalhar. “Obrigada por me lembrar de sua língua solta, Fordil. – Virando-se para os aprendizes, complementou – sim, minha espada já se chamou Céu de Helena, mas mudei logo em seguida para Celena. Eu era jovem e essa é uma história para outra hora.”
“Fico orgulhoso de sua postura como mestre, Zer, nem parece o aprendiz que montava planos mirabolantes para escapar da vila e visitar sua namorada na aldeia.” – o espadachim se divertia como se fosse um aluno novamente.
Por mais que quisesse repreender o amigo, aquelas lembranças faziam os cantos da boca de Zer subir em meio a memórias alegres, de um tempo com menos responsabilidades.
“Fordil, eu tenho uma reputação a zelar – e olhou de relance para os três aprendizes perplexos na sua frente - ...e você deveria me tratar como um mestre, sabia? Formado ou não, tendo liderado exércitos ou não, aqui na vila você sabe bem como é a hierarquia.” – apesar de carregar verdades, as palavras de Zer eram amigáveis, quase em tom de brincadeira.
O espadachim colocou a mão sobre o ombro de Zer carinhosamente: “Queria que toda vez em que eu precisasse respeitar uma hierarquia, fosse obedecendo a um mestre como você. Os anos vividos em ambientes de dor e ódio, quase me fizeram esquecer como a vida na vila é um paraíso. Você fez bem em ficar.”
As palavras do experiente guerreiro ecoaram em Quel, a colocando novamente em dúvida sobre seu futuro.
“Você...foi designado para um exército Além-mar?” – perguntou Halene com cautela para não interromper de maneira brusca o momento dos dois amigos.
“Sim, vivi a maior parte da minha vida entre a água e o deserto, onde fica o reino de Namabás, meu rei. Se vocês pensam que aqui faz calor, vocês não sabem como é no interior das terras além-mar.”
Os jovens ficaram encantados ao saber que ele conhecia um rei de verdade e já tinha atravessado o oceano.
“Não sente falta do frio das noites de inverno daqui?” – perguntou Zer.
“Depois das Guerras do Norte, o frio me traz lembranças terríveis. Prefiro sentir a areia escaldante e seca sob meus pés a ter que me agasalhar.”
“Como você foi parar nas Guerras do Norte? Não há razão para seu rei ter se envolvido em um conflito tão distante.” – perguntou Zer intrigado.
“Ele não se envolveu. Quem resolveu participar disso foi seu filho mais novo, Raduim. Na época, eu liderava um pequeno esquadrão de elite que fazia a proteção do príncipe e ele recebeu um convite para se juntar a um General das Terras Frias, com promessas de glória e riquezas. Sendo o terceiro na linha de sucessão, ele sabia que suas chances de ascender ao trono do pai eram mínimas, então pensou que participar de uma grande guerra, o faria ser reconhecido como o herdeiro ideal.”
Fordil suspirou antes de continuar.
“Foram tempos difíceis. A ida de Raduim não foi autorizada, mas ele estava obstinado e iria com ou sem a benção real. Foi quando meu rei me pediu para acompanhar seu filho e garantir que ele voltasse vivo.”
“Reuni meu esquadrão e zarpamos em um dos melhores navios da frota do reino. Foram semanas ansiosas no mar, mas nada poderia nos preparar para o que vimos no Norte. Uma guerra sem sentido, exércitos se atacando pelo simples prazer de matar, em um terreno inóspito e impiedoso. Lutamos sob o brasão de um General ardiloso sem um pingo de humanidade. Perdi mais da metade do meu esquadrão. Ao final da guerra o General morreu e voltamos para casa somente com as cicatrizes de uma barbárie. O Príncipe Raduim nunca mais foi o mesmo desde nosso retorno.”
Ao perceber os olhares desolados dos jovens e do monge, Fordil amenizou o clima: “O lado bom dessa história é que por cumprir minha missão, pude pressionar meu rei a honrar o acordo da designação, me permitindo voltar à vila mais cedo do que ele gostaria. E aqui estou para aterrorizar vocês com minhas histórias de guerra durante as aulas.”
“Sempre há resistência, mas todos sabem que nossos espadachins têm a obrigação de retornar pelo menos uma vez à vila para passar seu conhecimento adiante. Fico feliz que esteja conosco no ano de formação de Quel.” – ao olhar com carinho para a menina, Zer se lembrou de uma coisa.
“A propósito, Fordil, em suas andanças pelo mundo, você já viu um símbolo assim? – mostre-o seu colar, Quel.” – obedecendo ao mestre, a menina retirou seu pingente de dentro de sua blusa e o exibiu para o espadachim.
O homem segurou a peça de prata em sua mão e o observou por alguns instantes antes de voltar seu olhar para Quel - uma certa esperança pulsando em seus grandes olhos verdes.
“Ursos do Norte.” – falou Fordil.
“Você tem certeza?” – indagou Zer.
“Sim. Matei muitos desses por lá. São grandes, podem ser agressivos e seu pelo claro se confunde com a neve. Sua carne durava dias e sua pele era um dos melhores isolantes para não congelarmos à noite. Talvez a cauda fosse...acho que eles não tinham cauda, mas o focinho é exatamente assim. Onde você conseguiu isso?”
Pela primeira vez, Quel teve receio em contar sobre sua origem desconhecida. Tatear a verdade parecia mais assustador do que ela podia imaginar e ela se perguntou se aquele espadachim era confiável.
Como se respondesse a esse questionamento, Zer respondeu sem hesitar: “Quel carrega esse colar desde que chegou à vila, mas não sabemos muito além disso.”
Halene e Marcel ouviam intrigados àquela descoberta, enquanto o rosto de Quel não disfarçava certo desconforto com as informações. “Não sei se isso te dá ou te tira esperanças, mas acho mais provável que esse colar tenha viajado até o lugar onde você nasceu, minha jovem. Não vejo como uma mulher grávida ou um bebê sobreviveriam naquele lugar. Quando as Guerras terminaram, o que restou foi um mar branco, gelado e abandonado. A única prova de que houve vida ali, era a presença pujante da morte.”
“Talvez seu pai tenha lutado e sobrevivido às Guerras do Norte, Quel.” – Marcelo tentou animá-la.
“É verdade.” – a menina sorriu e olhou para baixo ao voltar o colar para dentro de suas vestes.
Zer tinha uma percepção afiada para qualquer oscilação do humor de Quel. Ele sabia que a conversa não tinha rumado para um final satisfatório, então emendou: “Fordil, se você estiver disponível, podemos ouvir mais sobre suas vivências nas Terras do Norte mais tarde? Tenho certeza de que Quel e outros aprendizes também vão se interessar por suas histórias.”
O espadachim prontamente concordou e os dois homens se despediram do trio para tratar de assuntos das aulas, quando uma quarta pessoa se juntou ao grupo de amigos.
Feara segurava uma bolsa de moedas, uma carta, e sua cara não estava nada boa.
Novos capítulos todas as sextas-feiras 🌻
Próximo capítulo:
#30 - Tarefas indesejadas
“Vocês não vão acreditar.” – o ódio de Feara emanava de todo o seu corpo. “Meu pai me parabenizou pela Espada de Honra, mandou uma quantidade generosa de moedas e disse que me espera em casa no final do ano. Ele não quer que eu aceite nenhuma designação porque precisa de apoio na segurança dos Moinhos da família.”
O que já rolou em Greenfar:
Prólogo: O começo de Greenfar
Capítulo 1: Sozinha na floresta
Capítulo 2: Marcas
Capítulo 3: Zelas
Capítulo 4: Escolhidos?
Capítulo 5: Tempestades
Capítulo 6: Ghraul
Capítulo 7: Ramira
Capítulo 8: Quase 10
Capítulo 9: Que na busca permaneçamos
Capítulo 10: Enfim, lâminas.
Capítulo 11: Espada de honra
Capítulo 12: Pensamentos intrusivos
Capítulo 13: Batalhas dentro e fora
Capítulo 14: Relaxe e lute
Capítulo 15: Estrelas negras
Capítulo 16: Barulhos
Capítulo 17: Golpe baixo
Capítulo 18: Tudo doía
Capítulo 19: Raiva e orgulho
Capítulo 20: Mãozinha
Capítulo 21: Que comecem as celebrações
Capítulo 22: O colar
Capítulo 23: Mentiras
Capítulo 24: Mais decepções
Capítulo 25: Entre lágrimas e golpes
Capítulo 26: Diário de Mestre Rhano
Capítulo 27: Na sarjeta
Capítulo 28: A parte que faltava