“Vocês não vão acreditar.” – o ódio de Feara emanava de todo o seu corpo. “Meu pai me parabenizou pela Espada de Honra, mandou uma quantidade generosa de moedas e disse que me espera em casa no final do ano. Ele não quer que eu aceite nenhuma designação porque precisa de apoio na segurança dos Moinhos da família.”
“E sua irmã? Ela não é uma arqueira dos Capas Azuis? Ela não pode cuidar disso?” – as perguntas de Quel eram as mesmas que Halene e Marcel se faziam ao redor da amiga.
“Parece que ela recebeu a mesma carta e já está a caminho de casa. Mas com muita bondade, meu pai vai me permitir terminar a formação. Quanto amor.”
Percebendo o subir e descer colérico do peito da amiga, Quel se aproximou e tocou seu ombro: “Lembra da respiração, você não vai conseguir nada nesse estado.”
Ao invés de se acalmar, seus olhos começaram a verter lágrimas de raiva, a enfurecendo ainda mais. “Isso não vai ficar assim. Eu vou responder a essa carta e dependendo da resposta, ele nunca mais vai me ver.”
“Fe, eu tenho certeza de que seu pai vai entender. Ele deve saber que uma designação vai te deixar muito mais preparada.” – disse Halene.
“Talvez eu precise de sua ajuda para escrever essa resposta, do contrário eu só vou mandar meus gritos de raiva pelo vento para que ele ouça bem alto! E enquanto isso – a menina se virou para Quel – vamos torrar essa sacola de moedas inteirinha na aldeia esse final de semana.”
“Se isso te deixar melhor, conte conosco.” – Quel fez o cumprimento dos espadachins levando a mão fechada até o coração e passou seus braços ao redor da amiga. Sua raiva pareceu desmontar no abraço.
“Tenho certeza de que você vai se acertar com seu pai, Fe, mas sem querer estragar o momento, estaremos bem encrencados se não corrermos para a aula de Formação de Guerra.” – Marcel havia notado os últimos aprendizes entrando no espaço fechado de treino, onde Fordil e outros dois mestres aguardavam.
As aulas da Formação de Guerra eram realizadas em galpões isolados em uma parte mais distante das áreas de treino comuns. Assim que os quatro amigos entraram no espaço, os mestres fecharam as grandes portas de madeira, deixando o lugar apenas com um feixe de luz vindo de uma claraboia no telhado, iluminando uma pequena parte do chão de terra batida. Não havia janelas, bonecos de treino ou marcações no chão. As tochas estavam apagadas, fazendo o lugar parecer de noite.
Halene correu para o lado de Druck, seguida de Quel, Halene e Marcel, e toda a turma tentava entender o que aconteceria ali, quando Fordil se colocou sob a única luz do lugar.
“Parabéns por chegarem aqui até, tenho certeza de que muitos aprendizes ficaram pelo caminho. Gostaria de lhes dar as boas-vindas, mas aqui vocês vão aprender o que há de pior no mundo, uma centelha da realidade de suas designações.” As palavras de Fordil fizeram Feara dar um grande suspiro, lembrando da carta do pai.
“Gostaria de relembrar algumas regras importantes da vila: é proibido usar lâminas para dar golpes fatais ou com intenção de matar, assim como é proibido ferir qualquer pessoa a ponto de perder um membro. Essas regras permanecem vigentes durante todo o tempo.”
Os aprendizes se entreolharam tentando entender por que isso estava sendo reforçado.
“As proibições de provocações, manipulação mental ou de energia e golpes baixos – em áreas sensíveis, em pessoas em posição de vulnerabilidade, ataques por trás ou em oponentes que estejam fora do combate – também se aplicam aqui, a menos que seja declarada a permissão em determinadas atividades.”
Diversos sons de surpresa foram ouvidos na turma. Nunca as regras haviam sido flexibilizadas.
“Mas não se acostumem – ainda – com essas liberdades. Por mais que utilizem os acessórios pretos, vocês ainda não possuem a insígnia de espadachim. – E deu dois toques no broche brilhante que carregava no peito - Qualquer atitude errada fora das atividades determinadas, levará às sanções usuais.”
Os olhares trocados entre os aprendizes transbordavam de medo e apreensão.
“Faremos o possível para que essas atividades sejam realizadas com segurança – utilizaremos espadas de madeira em alguns momentos.” – alguns suspiros de alívio foram ouvidos antes que ele continuasse:
“Aqui dentro vocês vão aprender que o mundo lá fora não segue as regras da vila. Na verdade, em muitos lugares não existem regras e seu instinto de sobrevivência vai falar mais alto. Pensar é um luxo que muitas vezes a batalha não permite e as técnicas de luta precisam estar gravadas na memória de cada músculo do seu corpo. Do contrário, vocês vão ser a próxima presa de qualquer oponente mais forte ou mais inteligente.”
No meio da penumbra daquele espaço enorme, a turma parecia ter formado uma unidade sólida, com os corpos o mais próximo uns dos outros, quando uma mão tímida se ergueu no meio do grupo.
“Parece que alguém tem uma pergunta e isso é importante: em alguns momentos vocês terão respostas. Em outros, deverão seguir em frente com suas dúvidas e tomar suas próprias decisões. Agora, por exemplo, não é hora de perguntas.”
As palavras de Fordil iam lentamente oprimindo o grupo de jovens, cada vez mais assustados.
“Em nossa primeira lição, vamos falar sobre a Morte. Não há guerra sem mortes e vocês precisam se acostumar com isso. Enquanto na vila vocês são aprendizes espadachins, para o mundo lá fora vocês serão vistos como assassinos, e muitas de suas designações vão exigir de vocês a frieza de matar de maneira intencional.”
O estômago de vários dos jovens embrulhou.
“Os mestres são bastante cuidadosos em suas designações iniciais, mas a vida certamente os levará para situações não tão nobres, onde os valores aprendidos aqui na vila serão colocados em xeque quando confrontados com suas obrigações, mas isso é tema de outra aula. Hoje, precisamos encarar a morte. E se acostumar com ela.”
Fordil fez um movimento de cabeça para os dois mestres que aguardavam em um canto escuro do galpão. A dupla abriu uma portinhola de madeira e foi possível ouvir alguns balidos vindos de dentro. Em instantes, diversas ovelhas e cabras vagavam pelo lugar.
Quel olhou para seus amigos e encontrou o mesmo semblante incógnito que carregava.
“Sua primeira lição acaba de chegar. Escolham um animal e usem suas espadas para abatê-lo. É mandatório que o golpe o faça sangrar.” – a serenidade de Fordil deixava a situação ainda mais chocante para os jovens.
“Ele não pode estar falando sério.” – Halene olhava de Druck para as amigas em pânico. Ninguém sabia ao certo como proceder e se mantinham ainda mais unidos naquela formação compacta.
Percebendo a hesitação, Fordil complementou: “Vocês têm 30 minutos e não vão querer saber qual a punição para quem não cumprir a tarefa.”
“Alguns são apenas cordeiros ainda...” – sussurou Feara. O incômodo só piorava, até Teago se mover e sair da formação. “Precisamos fazer isso, pessoal. Pelo que Fordil falou, essa tarefa deve ser só o começo.” E caminhou na direção das pacatas ovelhas com convicção.
Aos poucos, os jovens foram se espalhando pelo galpão, a procura de sua “lição”. O último berro de alguns animais coincidia com o som de vômito de um ou outro aprendiz.
“A gente consegue.” – disse Druck encorajando as meninas. Ele segurou a mão de Halene com força antes de se distanciar do grupo. As três meninas se entreolharam sem conseguir emitir sequer uma palavra de encorajamento. Os olhares de resignação foram a única coisa que conseguiram dar umas para as outras antes de se separarem desembainhando suas espadas.
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Enquanto isso, perto da aldeia...
“Coloca força nesse braço, Rian! Não quero fazer o trabalho todo sozinho de novo!” – os resmungos do rapaz pareciam não afetar Rian, que limpava a área dos animais da trupe itinerante com um descaso descarado.
“Relaxa, eu não vou ficar muito tempo nessa função. Vou falar com o aquele barbudo gordo para me dar um trabalho melhor. Eu sei que posso fazer mais por aqui.” – e encheu um balde pela metade, recebendo uma bela virada de olhos de seu companheiro de tarefa.
“Sério, Rian? – o rapaz parou com uma vassoura apoiada no chão - Você passa a maior parte das noites dentro das carroças das ciganas e o Barriga já notou isso. Ele não está nada feliz de dividir a atenção das meninas com você.”
Rian caminhou lentamente com o balde balançando até o rapaz.
“Eu estou ajudando aquelas belas donzelas. Elas vão vender um monte de cacarecos na aldeia esse final de semana. Elas precisam de mim.” – o sorriso arrogante de Rian fez o rapaz virar os olhos novamente.
“Quem precisa de você sou eu e esse monte de estrume aqui na nossa frente. Tem muita gente nessa trupe que pode ajudá-las. E durante o dia. Anda, joga esse balde aqui.”
Rian espalhou a água pelo chão imundo e, ao ver duas ciganas se aproximando, ajeitou a roupa e alisou o cabelo, armando seu melhor sorriso.
“Olá, meninas, precisam de alguma coisa?” – ao ouvir a pergunta, o outro rapaz soltou um suspiro longo.
Entre risinhos e olhares, uma delas respondeu: “Sim...vamos perguntar ao Barriga se você pode ficar conosco na barraca esse final de semana. Queremos levar nossas joias mais valiosas para vender. Temos certeza de que o lugar estará cheio de gente rica indo ao culto daquele sacerdote famoso. Seria de muita ajuda ter você para nos manter seguras. Você faria isso, Rian?” – o tom meloso da jovem arrancou uma careta do companheiro de limpeza.
O irmão Salas mais velho olhou de relance para seu parceiro de tarefa, que preferiu se virar e esfregar o chão com mais força. Voltando-se para as jovens, ele respondeu:
“É claro, seria um enorme prazer ajudá-las.” – e as ciganas saíram cochichando após receberem uma piscadela do rapaz.
Novos capítulos todas as sextas-feiras 🌻
Próximo capítulo:
#31 - A vida lá fora
Ao final da primeira semana de Formação de Guerra, os aprendizes estavam exaustos. O horário das aulas era estendido, pois dizia Fordil: “A guerra não tem hora do almoço.” Além do esforço físico extremo dos combates, as atividades mexiam diretamente com o psicológico dos jovens, especialmente as disputas em grupos, onde eram incentivados a pensar em dif…
O que já rolou em Greenfar:
Prólogo: O começo de Greenfar
Capítulo 1: Sozinha na floresta
Capítulo 2: Marcas
Capítulo 3: Zelas
Capítulo 4: Escolhidos?
Capítulo 5: Tempestades
Capítulo 6: Ghraul
Capítulo 7: Ramira
Capítulo 8: Quase 10
Capítulo 9: Que na busca permaneçamos
Capítulo 10: Enfim, lâminas.
Capítulo 11: Espada de honra
Capítulo 12: Pensamentos intrusivos
Capítulo 13: Batalhas dentro e fora
Capítulo 14: Relaxe e lute
Capítulo 15: Estrelas negras
Capítulo 16: Barulhos
Capítulo 17: Golpe baixo
Capítulo 18: Tudo doía
Capítulo 19: Raiva e orgulho
Capítulo 20: Mãozinha
Capítulo 21: Que comecem as celebrações
Capítulo 22: O colar
Capítulo 23: Mentiras
Capítulo 24: Mais decepções
Capítulo 25: Entre lágrimas e golpes
Capítulo 26: Diário de Mestre Rhano
Capítulo 27: Na sarjeta
Capítulo 28: A parte que faltava
Capítulo 29: O lendário de Além-mar