Ao final da primeira semana de Formação de Guerra, os aprendizes estavam exaustos. O horário das aulas era estendido, pois dizia Fordil: “A guerra não tem hora do almoço.” Além do esforço físico extremo dos combates, as atividades mexiam diretamente com o psicológico dos jovens, especialmente as disputas em grupos, onde eram incentivados a pensar em diferentes soluções para vencer o inimigo, incluindo armadilhas e traições.
“É óbvio que quem está na Formação de Guerra não fala nada sobre as aulas. Me embrulha o estômago todo dia quando vejo a carne de cordeiro sendo servida, sabendo sua origem. Melhor os mais novos não saberem mesmo.” – Halene beliscava um pedaço de queijo com má vontade na mesa do refeitório.
Druck, Quel e Marcel concordaram com a cabeça, sem ânimo de engajar na conversa. Metade da turma ainda dormia, aproveitando o primeiro dia de descanso da semana, quando uma figura empolgada se aproximou e soltou uma bolsa de moedas no meio do grupo.
“É hoje, meus amigos. Essa bolsa vai voltar vazia da aldeia e espero que um de vocês consiga me carregar porque eu vou beber Catuim de todas as frutas disponíveis.” – ninguém entendia de onde Feara tirava energia depois daquela semana.
“Fe...você sabe que eu amo ir à aldeia, mas sinceramente, hoje eu só quero voltar pra cama.” – Marcel estava visivelmente desanimado. Os demais pareciam concordar.
“Ficar na cama remoendo tudo o que fizemos durante essa semana não vai adiantar nada. É melhor se distrair e tentar esquecer. Hal? Druck? E aí?” – a menina esperava uma resposta positiva do casal, mas foi contrariada.
“Fe, preciso estudar. As aulas consumiram todo o tempo que eu tinha de leitura durante a semana.” – Halene sabia que estava desapontando a amiga.
“Nem conte comigo, tô todo quebrado.” – lamentou Druck.
Antes de abrir a boca, Feara se virou para Quel: “Nem sonhe em dizer que não vai, temos um trato e você vai cumprir sua promessa.”
Quel olhou para os amigos como se pedisse socorro, mas os três se levantaram rindo e desejaram boa sorte para as duas. “Não tenho como escapar dessa, né?” – a menina se resignou.
“Não mesmo. Termina rápido esse leite porque a aldeia vai estar fervendo e essa é a última coisa saudável que você vai beber hoje.” – o sorriso de Feara fez Quel rir de sua própria desgraça.
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A rua principal da aldeia parecia um formigueiro de pessoas espremidas entre lojas e barracas. Além dos mercadores de sempre, todos os cantinhos estavam ocupados por vendedores de passagem, artistas de rua abrindo espaço para suas performances, religiosos de túnicas brancas, figuras de prestígio ostentando roupas elegantes, alguns aprendizes das mais diversas idades, monges tentando controlar os mais jovens e pessoas simples de cidades próximas vindo fazer compras, assistir aos shows ou ir ao grande encontro religioso.
Em uma extremidade da aldeia, uma tenda enorme havia sido erguida para comportar os fiéis que vieram assistir ao sermão do Sacerdote Stan, carregando suas crianças para receber a benção das 3 estrelas. Do outro lado, um palco de madeira juntava pessoas animadas para pagar uma moeda e assistir aos shows dos ilusionistas da trupe itinerante.
Ao lado da bilheteria improvisada, a barraca das ciganas brilhava com brincos, colares, anéis, pulseiras, lenços e outros adereços coloridos. Atrás do balcão de madeira, sentado em um monte de feno com as pernas apoiadas em um caixote, Rian observava o curioso modelo de vendas: ao perceberem alguém mais endinheirado observando a barraca de longe, geralmente mulheres, as ciganas acenavam e a convidavam para olhar as peças de perto, rapidamente a cobrindo de itens, dando pouco espaço para a pessoa pensar. Então vinham os elogios, do quanto aquele colar havia enaltecido seus olhos ou a pulseira dava um ar de poder discreto. As ciganas eram sedutoras e convincentes, e logo as moças chamavam seus maridos abastados para comprar uma peça ou outra. Contrariados, eles faziam a vontade das esposas só para se livrar do falatório das vendedoras. E o ciclo se repetia cliente após cliente.
“Vocês são muito talentosas...não se cansam de repetir os mesmos elogios para todo mundo que para aqui?” – perguntou Rian observando o movimento intenso na rua à sua frente.
“Pelo tanto que vamos ganhar hoje, nem lembraremos do cansaço!” – disse uma delas rindo para as outras, enquanto já começavam a acenar para uma moça tímida que se aproximava.
“Eu deveria receber algum tipo de compensação pelo meu serviço aqui hoje com vocês, não acham?” – sua pergunta era sugestiva e arrancou risos contidos das ciganas que ouviram.
“Não se preocupe, Rian, vamos te dar algumas moedas. E quem sabe algo mais.” – o rapaz se mostrou satisfeito com a resposta charmosa.
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Apesar de não ter bebido tanto Catuim quanto Feara, Quel se perguntava como elas haviam chegado em uma barraca de corrida de cobras.
“Mais duas moedas na cobra-cipó!” – bradou Feara arremessando o ouro em uma tigela na lateral da estrutura de madeira onde as cobras aguardavam em um canto para serem liberadas e “correrem”.
“Eu não vejo a menor graça nisso, Fe.” – a menina soou entediada.
“Como não, Quel?! Olha só, elas vão ser liberadas de novo, olha lá!” – Quando as cestas foram levantadas, os animais começaram a deslizar vagarosos pelas canaletas aos gritos da torcida ao redor. Sempre que uma cobra tentava sair de seu percurso, o dono da barraca a recolocava com um bastão fino de ferro.
“Acho que sua aposta foi em vão, olha lá sua cobra enrolada no bastão do homem. Ela não parece muito disposta a voltar para a corrida.” – Mas Feara não pareceu ligar muito para as moedas perdidas.
“Vence a cobra-do-milho!” – Quel aproveitou o anúncio para puxar Feara do meio dos apostadores animados que se juntavam para receber seus ganhos.
“Só mais uma rodada, Quel!” – a menina queria voltar para o grupo ao redor da barraca, mas foi impedida pela amiga.
“Você quer gastar até a última moeda dessa bolsa, mas não precisa ser em apostas, né? Se essa é sua ideia para me animar com a vida fora da vila, você está falhando miseravelmente.” – Feara ficou levemente menos bêbada ao receber essa chamada da amiga.
“Você tá certa, mas ainda está cedo para a Fogueira Norte.” – Quel a olhou sem entender.
“Isso que dá ficar enfurnada na vila, nem sabe o que é a Fogueira Norte. – e deu um risinho malicioso – é onde a vida acontece, Quel! Quando o dia termina, as barracas fecham e todo mundo se reúne na antiga praça central. É lá que vamos achar alguém bem interessante para você ver o mundo aqui fora.”
“Ah, Não, Fe, nem vem...suas armações amorosas para mim costumam ser um desastre...” – a menina levou a mão ao rosto se lembrando das figuras que ela havia se relacionado nos últimos anos, a maioria por incentivo de Feara.
“Você é muito exigente, Quel! Precisa abrir a mente! E sair dessa postura de espadachim durona o tempo todo, inclusive, vamos resolver isso agora. Você não pode ir pra Fogueira Central assim.”
“Assim como?” – Quel se olhou e não viu nada de errado.
“Como alguém vestida para uma aula de técnica chata do Mestre Rhano!” – e caiu na gargalhada.
“Estou oficialmente arrependida de ter feito esse combinado de “ver a vida aqui fora” com você – Quel ficou séria e Feara parou de rir imediatamente – mas um Catuim a mais talvez me convença de que foi uma boa ideia.” – e as duas deram um abraço rindo, aproveitando o ébrio das doses já tomadas da bebida.
As horas na aldeia passaram voando. Além de assistir a um show de ilusionismo, a dupla comeu melaço salgado e outras iguarias, experimentou todas as variações de Catuim e ainda compraram presentes duvidosos para pregar peças em seus amigos. Ainda assim, restavam muitas moedas na bolsa de Feara.
“Seu pai é rico mesmo, né? Essas moedas não acabam nunca.” – comentou Quel enquanto enchia a boca de um doce de cacau.
“De nada adianta essa riqueza confinada em casa. Mas eu vou desafiá-lo e honrar o nome da minha espada. Ela não se chama ‘Liberdade’ à toa” - e deu um tapinha na arma embainhada em sua cintura. “Falando em desafiá-lo – continuou – já sei onde terminar de gastar essas moedas.” – o olhar maléfico de Feara fez a amiga dar um riso frouxo, sem saber se ouviria uma ideia boa ou terrível.
A menina apontou com a cabeça para uma barraca de joias.
“Meu pai detesta ciganas – e começou a gargalhar – elas vivem tirando dinheiro dele, porque minha mãe ama comprar esses adereços e pedir leituras da mão. Nossas últimas moedas serão delas! E de quebra, vamos te deixar mais interessante pra Fogueira Norte.” – e saiu puxando Quel pela mão em direção a barraca.
A aproximação das meninas não chamou a atenção das mulheres – estavam mais interessadas nos clientes sendo atendidos ou em observar possíveis compradoras pela rua. Percebendo o descaso, Feara sacou a bolsa de moedas e a soltou de maneira barulhenta na mesa de joias, atraindo imediatamente a atenção de todos.
“Gostaríamos de ver alguns acessórios para minha amiga.” – foi difícil para Quel segurar o riso ao ver sua companheira tentando parecer séria e sóbria.
Uma das ciganas imediatamente abandonou um atendimento e se posicionou sorrindo em frente às meninas. Rian cochilava acomodado no feno, mas o barulho das moedas o fez despertar no susto, e ele começou a prestar atenção naquelas clientes peculiares.
“Posso ajudá-las, minhas jovens? Tenho certeza de que temos todos os itens necessários para torná-las ainda mais belas.” – e a cigana colocou um colar de ouro no pescoço de Feara. “Já parece uma donzela assim.” – complementou.
“E para você – disse olhando para Quel – um adereço de cabeça vai realçar seus lindos olhos verdes.” – e colocou um tipo de tiara com um pendente na testa. As meninas se olharam e riram.
“Acho que não combina muito comigo, senhora.” – Quel tentou ser educada e retirou o objeto, se esforçando para não olhar para Feara. Ela sabia que começaria a rir se encontrasse o olhar da amiga naquele teatro onde eram mocinhas delicadas e interessadas em joias.
“E que tal anéis? Mãos finas como a de vocês merecem esse destaque.” A mulher puxou uma bandeja cheia de cores e formatos.
“Anéis me parecem uma ótima ideia!” – e Feara começou a enfiar um em cada dedo.
Quel se lembrou do anel da mulher misteriosa que morreu tentando chegar com ela na vila. Ele ficava bem guardado junto às suas roupas.
“Não sei se anéis combinam com a vida de quem usa uma espada todo dia, Fe...”
“Deixa de ser estraga prazeres, Quel! A ideia aqui é sermos mais do que espadachins.” - e se virou para a mulher à frente: “Ela precisa de um colar novo...e pulseiras! Sim, pulseiras coloridas!” – Feara agora parecia genuinamente animada com a compra de acessórios, experimentando tudo o que estava em sua frente.
“Não conhecia esse seu lado madame, Fe...” – Quel se divertia vendo a avidez da amiga em meio àqueles luxos.
“Agradeça à criação tradicional de minha família. Alguns hábitos podem ficar adormecidos, mas nunca morrem de verdade.” – e o riso frouxo das duas continuava.
Fazendo certo drama na medida certa, a mulher colocou na frente das meninas um suporte cheio de pulseias de pedras: “Meu coração fica até apertado de vender essas belezinhas, são pedras originais das minas do sul, não se encontram muitas dessas por aqui.” – e hesitou ao colocar uma das peças em Quel, por conta do protetor de pulso preto.
“Quel, tira esse negócio, deixa isso pra vila. Lembra? Você.não.é.a.sua.espada.” – e voltou a provar um colar cheio de penduricalhos, sem notar a virada de olhos que recebeu da amiga.
“Tá bom, tá bom...” – Quel desamarrou a munhequeira do braço direito e a guardou em sua bolsa, levantando o antebraço para que a mulher colocasse uma pulseira de gemas verdes adornada com detalhes em ouro.
Rian acompanhava o atendimento com uma curiosidade displicente, mas quase caiu do bloco de feno com o que viu.
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Novos capítulos todas as sextas-feiras 🌻
Próximo capítulo:
#32 - As marcas originais
A força do bater do coração de Rian parecia estraçalhar seu peito. Seus pensamentos entraram em turbilhão, mas seus movimentos estavam em câmera lenta.
O que já rolou em Greenfar:
Prólogo: O começo de Greenfar
Capítulo 1: Sozinha na floresta
Capítulo 2: Marcas
Capítulo 3: Zelas
Capítulo 4: Escolhidos?
Capítulo 5: Tempestades
Capítulo 6: Ghraul
Capítulo 7: Ramira
Capítulo 8: Quase 10
Capítulo 9: Que na busca permaneçamos
Capítulo 10: Enfim, lâminas.
Capítulo 11: Espada de honra
Capítulo 12: Pensamentos intrusivos
Capítulo 13: Batalhas dentro e fora
Capítulo 14: Relaxe e lute
Capítulo 15: Estrelas negras
Capítulo 16: Barulhos
Capítulo 17: Golpe baixo
Capítulo 18: Tudo doía
Capítulo 19: Raiva e orgulho
Capítulo 20: Mãozinha
Capítulo 21: Que comecem as celebrações
Capítulo 22: O colar
Capítulo 23: Mentiras
Capítulo 24: Mais decepções
Capítulo 25: Entre lágrimas e golpes
Capítulo 26: Diário de Mestre Rhano
Capítulo 27: Na sarjeta
Capítulo 28: A parte que faltava
Capítulo 29: O lendário de Além-mar
Capítulo 30: Tarefas indesejadas